Design 2022
Frederick van Amstel
Professor de Design de Serviços e Design de Experiências na UTFPR
Usabilidoido, professor, pesquisador

A derrocada do usuariocentrismo

Escute este artigo

A partir dos anos 1980, a profissão de design passou a se orientar para objetos cada vez mais abrangentes. De gráfico a produto, passou gradualmente a interações a experiências. Nessa transição, a profissão perdeu o controle do seu objeto, mas acabou ganhando maior amplitude de atuação. 

Hoje, designers especializados em experiência são requisitados nos mais diversos âmbitos da sociedade: comércio, educação, indústria, turismo e etc. Apesar de não prometerem controlar experiências, estes designers prometem ser capazes de estudar, compreender e delinear experiências. Mas de que tipo de experiência eles estão falando que são capazes de projetar?

A experiência do usuário é o conceito que responde essa pergunta. Ele foi originalmente utilizado por Brenda Laurel em 1986 para falar sobre o que ela considerava ideal para quem usasse uma interface computacional. Assim como muitos conceitos populares, a experiência do usuário foi recoberta por mitos e ideologias, como por exemplo, o mito de que Donald Norman cunhou esse termo nos anos 1990. Quanto às ideologias, é possível notar como o termo se encaixou perfeitamente dentro da ideologia californiana, do solucionismo tecnológico, do neoliberalismo, do conservadorismo de costumes e outras ideologias contemporâneas.

Toda ideologia é uma explicação simples para uma realidade complexa que ainda não é completamente conhecida pela humanidade. Na medida em que a realidade se torna conhecida, as ideologias devem ser questionadas, rejeitadas e transformadas. O problema é que, na medida em que uma ideologia é disseminada pela sociedade, ela começa a ser utilizada para justificar e legitimar instituições, políticas, estratégias e até mesmo Leis.

A ideologia nasce na metaestrutura social, mas conforme é utilizada para construir coisas, se torna parte da infraestrutura social. Enquanto não se quebram as ideologias caducas, o desenvolvimento do conhecimento e da própria sociedade fica emperrado, pois não é fácil pensar fora dessa caixa. Quem acredita ou quem se beneficia de ideologia caduca age e reage para que ela não seja questionada, muito menos, derrubada. 

Embora o termo experiência do usuário tenha servido a outras ideologias, ele também foi importante para consolidar uma ideologia específica que legitima cada vez mais a profissão de design perante à sociedade: o usuariocentrismo.

No que consiste essa ideologia? Em suma, ela define o projeto de design ideal como aquele que está centrado nas características de seus usuários. Isso parece óbvio e verdadeiro para quem acredita nesta ideologia, porém, após anos de pesquisa questionando essa ideologia, já posso adiantar que há uma série de inverdades aqui.

Colocar usuários no centro do projeto não é só uma metodologia de projeto, é também uma ideologia de projeto. Desde que o design centrado no usuário foi definido (aí sim por Donald Norman e também outros autores), a premissa de que isso seria melhor ou até mesmo possível foi tomada como verdadeira. Para quem acredita fielmente nessa ideologia, é difícil reconhecer que essa premissa possa ser falsa. Vou fazer o melhor que posso para explicar porque essa ideologia está caduca e porque 2022 é o ano em que ela será derrubada.

Em primeiro lugar, quando se coloca alguém no centro de um projeto, essa pessoa deixa de ser tratada como um sujeito e passa a ser tratada como um objeto. Embora o objeto de design seja a experiência do usuário, concretamente, quem acaba sendo anexado a este objeto é o próprio usuário. É impossível estudar, compreender e delinear experiências usuariocentristas sem um usuário. Por outro lado, este usuário não precisa ser o tempo todo uma pessoa concreta. Pode ser uma pessoa abstrata, um tipo de pessoa.

Essa passagem do objeto abstrato ao objeto concreto costuma acontecer diversas vezes em um mesmo projeto, como se não fizesse diferença falar das características de uma pessoa específica ou falar das características de pessoas daquele tipo. Essa rotulagem, simplificação, padronização, diminuição, estereotipação são consideradas inevitáveis no usuariocentrismo pois, afinal de contas, o objeto de design só pode ser algo abstrato mesmo.

Como não é possível controlar a experiência do usuário, o que os designers tentam fazer para se legitimar na sociedade? Eles tentam delinear uma experiência abstrata que esta possa ser “sentida” por várias pessoas. Ao colocar uma experiência abstrata no centro do projeto, designers não estão de fato colocando pessoas no projeto, mas sim tipos de pessoas.

Rótulos, preconceitos e estereótipos são tipos abstratos de pessoas que costumam proliferar no usuariocentrismo, ocupando o lugar central prometido a pessoas concretas. Mesmo que, em algum momento, uma pessoa concreta seja diretamente ouvida ou até mesmo participe do projeto em uma oficina de codesign, assim que essa pessoa sai de cena, o que fica é a abstração que foi capturada ou validada daquela maneira.

Este é o mecanismo fundamental da ideologia do usuariocentrismo: transformar sujeitos concretos em objetos abstratos que podem ser manuseados pelo projeto. As pessoas concretas que passam pelo centro não têm poder de decisão sobre o projeto. Elas falam sobre suas experiências, mas não podem interferir diretamente sobre o projeto que lhe proporcionará experiências futuras. Dessa maneira, elas perdem a capacidade de agir por contra própria quando pensam estar, pelo contrário, se empoderando. O design centrado no usuário passa a sensação falsa de que os usuários estão no poder.

Para evitar que a participação de usuários concretos seja realmente poderosa, o usuariocentrismo dá origem a diversas camadas de distanciamento seguro entre usuários e designers: espelhos translúcidos, protocolo de entrevista, metodologias de design thinking, termos de consentimento, propriedade intelectual e muitas outras. Essas camadas servem para assegurar que o centro absorva e filtre a informação dos usuários que deseja obter para justificar a primazia das pessoas abstratas, chamadas no jargão profissional de personas, público-alvo, segmentos, ou padrões de dados, dependendo da metodologia centrada no usuário.

A parte menos visível do usuariocentrismo e mais distante da realidade são seus efeitos sobre as experiências concretas após a implementação do projeto. Uma vez que o projeto foi construído a partir de uma pessoa abstrata, caso a pessoa concreta não se identifique com ela, a experiência concreta pode ser péssima ou nem acontecer. Por exemplo, se uma experiência é projetada para um segmento de mercado, quem não faz parte daquele segmento é excluído ou desatendido pelo projeto.

Nem todos os usuários são bem-vindos no centro do projeto. Apenas aqueles que interessam a um outro centro é que são convidados: o centro de poder. Se os acionistas, diretores, investidores e gerentes querem colocar uma pessoa no centro do projeto, eles conseguem facilmente. Por outro lado, se usuários excluídos pelo projeto querem penetrar nesse centro para reivindicar melhorias na sua experiência, eles têm muitas dificuldades para serem reconhecidos. As camadas de proteção se interpõem também entre o serviço de atendimento ao consumidor e o departamento de experiência do usuário.

O usuariocentrismo inclui apenas alguns usuários no centro do projeto e mesmo assim, é uma "inclusão abstrata ao mesmo tempo em que é uma exclusão concreta" como critica o filósofo da comunicação Jesús Martín-Barbero, falecido em 2021. As pessoas assim excluídas ficam à margem do projeto e quando são eventualmente incluídas, não podem ir além do seu papel de usuárias.

O que significa ir além do papel de usuário? Significa poder projetar sua própria experiência a partir de produtos e serviços cocriados com diversos atores. Na perspectiva do Design Participativo, não faz sentido falar numa experiência projetada para o outro, pois todos projetam suas experiências para si. A ideologia por trás do Design Participativo está muito mais atual do que a ideologia caduca do usuariocentrismo. Nessa ideologia, a função do projeto é justamente conscientizar-se das possibilidades de produzir a sua existência através da tecnologia.

Eu acredito que 2022 será um ano em que a profissão de design irá deixar para trás o conceito de experiência do usuário, que poderá ser substituído a curto prazo por experiências cocriadas, experiências compartilhadas e experiências transformadoras. Não se trata apenas de uma substituição do que está no centro, por exemplo, de design centrado no usuário para design centrado no ser humano, na mulher, no negro ou no indígena. A mudança principal será nas relações entre essas pessoas.

O esclarecimento do usuariocentrismo leva a uma outra ideologia que não se baseia na centralização de poder, mas sim na negociação descentralizada de poderes. Ideologias mais radicais que o Design Participativo, como o Design Livre voltarão à tona, adquirindo novos significados e dando origem a projetos que trabalham com objetos mais concretos e menos abstratos. Em 2022, eu espero que a mais importante descoberta do design não seja o metadesign necessário para trabalhar o metaverso, mas sim o infradesign necessário para articular o pluriverso.

Frederick van Amstel

Frederick (Fred) van Amstel é professor de Design de Serviços e Design de Experiências da Universidade Tecnológica Federal do Paraná (UTFPR). Seu blog Usabilidoido é uma referência na área há mais de 17 anos. Suas pesquisas recentes buscam meios de participação democrática e criativa para reconhecer e incluir grupos sociais historicamente oprimidos na atividade de design. Visando realizar essa utopia, participou da fundação da rede Design & Opressão em 2020.

Deploy.me
Desenvolva sua carreira em UX Design, Produto e Dados com bootcamps imersivos, práticos e de curta duração com facilitadores das principais startups do Brasil e do mundo. How. Skills, not degrees.
15%OFF código:
DESIGN2021
Precisamos temer as consequências de tudo que projetamos
Suzi Sarmento
Vamos antropofatizar
Guilhermo Reis
Futures Thinking: a metodologia dos inquietos
Yasmin Conolly
Design System, como escalar acessibilidade no seu produto digital
Maju Santos
Desenhistas de conteúdo num mundo híbrido
Gabriel Pêra
Quem tem medo da pesquisa qualitativa?
Bruna Alves Maia
Do zero a uma carreira internacional como designer
Andressa Belém
Precisamos parar de subestimar o Visual Design
Victor Augusto
UX da Questão: a linguagem neutra como pauta de acessibilidade e inclusão
Allen Saoirse Ximenes
Por que você trabalha no RH?
Mikaela Alencar
Migrei para UX Writing. E agora?
Natasha Morello
Uma conexão UX & Produto
Rafael Brandão
Cuide das pessoas ao seu redor
Edi Fortini
O amadurecimento do UX tem que ir além dos frameworks
Beatriz Figueiredo
Quais mudanças você quer ver no (seu) mundo de Design em 2022?
Danielle Kawasaki
Nada jamais é influenciado (ou influencia) em apenas uma direção
Luciana Terceiro
Metaverso: eu fui!
Roberto Rodrigues Júnior
100 UX Designers iniciantes para chamar para entrevistas em 2022
Leandro Borges de Rezende
O que muda na perspectiva de uma profissional do design após a maternidade?
Caroline Kayatt
Existe esse tal de “glamour” em ser líder em Design?
Vanessa Serradas
Mad Max, os fundamentos e o futuro do Design
Keyle Barbosa
Design, desesperança e regeneração
Viviane Tavares
Criando a cultura de design remotamente e integrando time
Josias Oliveira
Será que esquecemos de fazer perguntas?
Apparicio Bueno Ferreira Junior
Pensamentos sobre o papel do UX Designer dentro de uma equipe de jogos
Leandro Lima
Empatia, Compaixão Racional e Design Inclusivo
Denise Pilar
Se você não sabe para onde ir, qualquer caminho serve
Tereza Alux
Mentoria e planejamento de carreira como a alavanca para o próximo nível da área de UX
Agnes Reis
Que tipo de relações estamos projetando?
Luciana Martins
Meu primeiro hackathon como UX Designer
Gabriella Chagas
Como NFTs vão revolucionar o Mundo
Odair Faléco
Se você quer migrar para UX Writing, venha por aqui
Ligia Helena
UX Writing: a construção do texto e a variação linguística do Brasil
Jeane Bispo
Desafios do designer deste século
Rafael Coronel
4 oportunidades de crescer e ser mais produtivo como designer durante a pandemia
Thais Souza
Design camaleão: o poder da adaptação e a importância do contexto
Thaís Falabella Ricaldoni
Liderando líderes de design
Adri Quintas
O futuro do design é sensorial
Juliana Franchin
Confissões de um design manager na pandemia
Eduardo Insaurriaga
A saúde mental da Mulher-Maravilha moderna e a jornada pelo autoconhecimento
Mariana Ozaki
Design Ontológico - Projetando o ser humano
Conrado Cotomácio
Carta para novos designers
Kathleen Repasche
Como o contexto de Pandemia nos ensinou a importância de ajudar ao próximo
Sérgio Silva
"Não reparem na bagunça": A quem estamos cativando?
Isabela Sousa Guimarães
Quando desistir não é um passo para trás
Marina Neta
Design nas organizações: a importância da definição de papéis
Bianca Galvão
O futuro do product design é o service design
Vanessa Pedra
Content design, acessibilidade, design inclusivo e o saco vazio que não para em pé
Cecí Romera
Maturidade no Design
Guilherme Zaia Lorenz
Eu não sei
Emerson Niide
Estética, Significação e Experiência
Fernando Paravela
Desafios para elevar a maturidade de design nas empresas
Larissa Ferreira Cruz
Designers e a construção de repertórios diversos
Thayse Ferreira
A jornada não é uma reta
Bruno Katekawa
Dias Passados de um Futuro Possível
Leonardo Lohmann
O principal ato de design de 2022
Alessandra Nahra
Os desdobramentos da pessoa profissional UX Writer
Willian de Oliveira Magalhães
Que tal ajudar a redesenhar experiências de aprendizado?
Daniel Lopes
Não é sobre você, “designer”
Nelio Lino Ramos Rodrigues
Ser designer é perder o equilíbrio momentaneamente
Gessé Celestino
Não vejo problema no design brasileiro
Janaína de Siqueira Bernardino
Brandbooks deveriam abraçar novos hábitos e virar arquivos abertos
Guta Tolmasquim
Liderança e Diversidade em Design de Produtos
Sara Bernardino
Ainda vale a pena fazer análise heurística?
Elizete Ignácio
não clique
]]]][[piol'''