Existem muitos artigos disponíveis sobre análises heurísticas na Internet. Então por que escrever mais um?
Ao longo do tempo observei que as heurísticas são muito comentadas e adotadas como princípios norteadores, porém a análise heurística em si é pouco aplicada por designers.
Minha hipótese é que a baixa adesão às análises heurísticas como método se deve a um olhar genérico do processo, focado nos mesmos exemplos de heurísticas, porém com pouco entendimento de como usá-las.
Na Psicologia, as heurísticas são definidas como regras básicas ou modelos mentais simplificados de julgamento, que permitem aos humanos decidirem e agirem rapidamente na maioria das situações do dia a dia.
No desenvolvimento de interfaces digitais, as heurísticas são assumidas como princípios ou regras que fundamentam a avaliação da usabilidade das interfaces. Em Design, quando falamos do tema, o foco geralmente recai no método proposto por Jacob Nielsen, baseado em 10 princípios a serem observados por diferentes avaliadores, orientados a localizarem e classificarem os problemas das interfaces desenhadas por níveis de severidade.
Mas qual a relação entre heurísticas na Psicologia e no Design de Interfaces? Henrique Monteiro mostra que, enquanto a análise heurística no Design é um processo consciente, as heurísticas mentais identificadas na Psicologia são processos inconscientes.
Mas Henrique Monteiro, Erika Souza e Eduardo Souto, Olibário Neto, e outros, destacam que as Heurísticas de Nielsen são insuficientes para dar conta e avaliar a multiplicidade de interfaces digitais existentes – e seus diferentes meios ou canais. E isto ocorre porque heurísticas propostas por autores como Brenda Laurel; Gerhardt-Powals; Weinschenk and Barker; entre outros autores (leia aqui, aqui e aqui, entre outras fontes disponíveis na rede) são deixadas de lado.
O que proponho é que designers criem metodologias proprietárias de análise heurística em suas empresas, tendo o método de Nielsen como norteador, mas indo além. Em duas empresas nas quais trabalhei pude liderar estas iniciativas e, sem pretensão de oferecer mais um método, quero compartilhar como fizemos.
A análise heurística é uma avaliação entre pares e, por isso, é bem importante toda a equipe colaborar na criação da metodologia. Na primeira empresa em que liderei a iniciativa o time era bastante pequeno, com apenas 8 designers. Então foi fácil envolver a equipe inteira em todas as etapas. Na segunda empresa o time tinha mais de 70 pessoas de UX, por isso elegemos representantes para participar do processo.
Ainda que o modelo da empresa seja user centric, os produtos que desenvolvemos estão associados aos modelos de negócio e aos valores das empresas nas quais são produzidos. Por exemplo, pensar em Liberdade e Controle do Usuário vai assumir diferentes significados em um banco tradicional ou em uma fintech que acabou de surgir; ou em uma empresa de educação e outra com foco em saúde. Provavelmente uma empresa que tem muito valor em transparência pode não ter problemas em ser redundante com as informações, contrariando a heurística de Gerhardt-Powals, de incluir apenas as informações estritamente necessárias para o usuário.
Na primeira empresa que atuei, mapeei mais e 80 heurísticas, entre aquelas focadas em Design e UX e outras mais ligadas à Ergonomia das telas, à Interação Humano-Computador e à Computação. Na segunda empresa, a equipe mapeou 45 heurísticas, apenas em Design e UX. Ampliar a quantidade de heurísticas permitirá trazer aquelas que mais fazem sentido para o produto.
Pode fazer sentido criar heurísticas ligadas aos valores da empresa, ao modelo de negócio ou à experiência de uso. Por exemplo, uma heurística específica sobre Proteção de Dados pode assegurar que a LGPD esteja sempre sendo considerada; ou ainda um conjunto específico de heurísticas sobre acessibilidade. Além disso, as heurísticas podem se mostrar muito genéricas e talvez seja necessário contextualizá-las.
1. Em ambas as empresas iniciamos com o mapeamento das heurísticas, com a descrição de todas aquelas consideradas relevantes para o perfil de usuários e modelos de negócio:
a. Na primeira, também criamos uma heurística sobre segurança de dados;
b. Na segunda, foram criadas heurísticas específicas sobre acessibilidade, pesquisa com usuário e conteúdo textual.
2. Em seguida, realizamos atividades de priorização, considerando os produtos digitais, modelos de negócio, valores e perfis de usuários.
a. Na primeira empresa fizemos um workshop de priorização com toda a equipe, usando uma matriz Importância x Impacto. No fim foram selecionadas 22 heurísticas.
b. Na segunda empresa, cada vertical de gestão fez a primeira priorização, selecionando cerca de 20 heurísticas. Em seguida, os representantes se reuniram em um workshop no qual priorizaram 25 heurísticas, através de debates e votações.
3. Em ambas as empresas realizamos workshops de validação do corpo das heurísticas, composto de: definição, objetivo e importância na análise. Na segunda empresa, a redação passou pelo crivo do time de UX Wrinting. Exemplo:
Controle do usuário: colocar os usuários no controle do processo do sistema (como interromper, cancelar, suspender e continuar). Cada ação possível deve ser antecipada, com oferta de opções apropriadas.
Objetivo: Avaliar a capacidade do usuário controlar as ações.
Por que é importante? Favorece a aprendizagem; diminui a probabilidade de erros; torna o produto mais previsível.
4. Durante o workshop também foi discutido qual seria a melhor ferramenta de análise e repositório.
a. Na primeira empresa, a ferramenta adotada foi um checklist no Confluence, com indicação da justificativa de avaliação e severidade.
b. Na segunda, optou-se por criar um board de avaliação no Figma, com quatro áreas: replicação da jornada projetada; campo de justificativa; indicação da severidade; e classificação em uma matriz 2x2.
5. O processo de avaliação foi o momento no qual mais surgiram diferenças nos métodos.
a. Na primeira empresa, definimos que a avaliação seria realizada por dois colegas, que recebem o link do checklist e devolvem preenchido para quem criou o design. Ficou em aberto para que designer projetista e designer de avaliação conversassem após a avaliação.
b. Na segunda empresa fizemos 3 MVPs, para entender qual modelo seria mais funcional para o time. No MVP 1 foi proposta uma avaliação coletiva, com 3 a 5 designers reunidos; no segundo MVP foi testado o envio do link para avaliação individual de três colegas, com retorno por escrito, e possibilidade de conversas posteriores; o terceiro MVP foi um desafio “antes e depois”, no qual designers escolheram interfaces em produção e fizeram um facelift baseado nas heurísticas. Os três modelos foram considerados aplicáveis, de acordo com a fase de desenvolvimento do produto.
6. Retorno da avaliação: em ambas as empresas ficou definido que não haveria obrigação de aceitar o resultado das avaliações ou fazer as mudanças sugeridas. Contudo, no que pude observar, a avaliação entre os pares foi vista como uma forma de aperfeiçoar o desenho.
Ao questionar colegas em Design e UX sobre a baixa adesão à análise heurística, recebi respostas como: “não entendo o método”; “são apenas princípios gerais”, ou ainda, “não vejo utilidade” (uma resposta honesta e compreensível). Porém, vale a pena fazer análises heurísticas. O resultado da análise ajuda a explicar decisões de Design para times de negócio e evidencia como a experiência projetada para o usuário se conecta com a proposta de valor da empresa ou do produto. Por fim, a ideia toda do artigo é incentivar a adoção de uma análise heurística sistemática entre pares. Espero receber outras respostas em 2022.
(1) Em ambas as empresas, foram mais de 100 pessoas a participarem das atividades e workshops junto comigo. Sem essa colaboração, a criação das metodologias não faria sentido. Mas quero agradecer principalmente a Davi Hoelz, Jeff Avelino, Jéssica Venâncio e Sabrina Vreuls pelas trocas, conversas e execução das atividades.
Mestre em Antropologia e Sociologia pela UFRJ. Atua há 20 anos em pesquisas de impacto social, marketing e tecnologia, e há 7 anos em pesquisa de experiência no Brasil e no exterior. Ministra cursos que articulam antropologia, design e metodologias de pesquisas com pessoas.