Ter fundado a primeira empresa de branding para startups do Brasil me trouxe alguns hábitos contestadores.
O primeiro, originado de lidar com clientes que estão fazendo branding pela primeira vez e desconhecem o padrão da indústria, é de ignorar os padrões da indústria. Questiono a indústria tradicional como a torcida organizada duvida da decisão do juiz em final de campeonato (exceto pelos xingamentos).
O segundo hábito, que nasceu da minha origem estrategista de branding, é de observar a vida como ela é. Ver como o nosso cliente usa na vida real as marcas que a gente cria me leva a diversos questionamentos das nossas entregas e processos. O que tem valor nisso tudo que fazemos?
Eis que minha atenção paira no brandbook triste e abandonado, no fundo de um email, soterrado por papéis virtuais, empoeirado.
Como pode tantas pessoas não usarem nossa principal entrega? E não me entendam mal, não é que o brandbook seja inútil, é que ele não foi feito para o dia a dia de empresas contemporâneas.
Segundo a Jay Leonel, nossa head de operações, tem empresas que veem o brandbook como inspiração e outras que veem como uma regra: os ditadores de brandbook. Não pode sair da linha, da curva, da cor, do elemento. Militares. Mas marcas não são batalhões. Marcas estão mais para nação do que para soldado.
No momento que a marca sai da agência e outro designer pega, ela já evoluiu. Palavras do Rob Fernandez, líder criativo aqui na Brand Gym. Essas novas cepas de elementos de marca surgem porque não conseguimos mapear tudo o que uma marca vai precisar durante sua vida ao longo do cronograma de um projeto de branding.
Concordo com ele que o brandbook não é uma resposta final, mas uma inspiração. E se a marca é um organismo vivo, que evolui, então por que o brandbook tem que ser um arquivo estático?
Eu já sei o que vocês vão falar. Pela consistência!
O recall, a consistência, o awareness, mantêm as marcas presas em PDFs fechados. Mas as marcas contemporâneas são do contra, que nem no poema de Mário Quintana, se nós que aqui estamos atravancarmos seu caminho, elas passarinho.
Eu ainda estou ouvindo vocês. A consistência. Precisamos dela, concordo. Mas será que a consistência vai se dar pela repetição do ângulo da ponta do grafismo? Cada vez mais acredito que marcas precisam saber o que elas significam e estarem abertas a evoluir sem perder sua essência.
Não to falando só de startups. Pensa na Disney. Ela é fiel ao entretenimento em família e à magia, mas as princesas hoje são outras, as narrativas são do tempo atual. Ainda vejo a mesma Disney de antes, mas a marca está nos tempos contemporâneos. Marcas que ficam trancadas em caixas fechadas envelhecem.
A Netflix outro dia mudou seu nome de perfil no Twitter para brincar com um meme. Nete Felix, põe no Google se você não conhece. A mudança é engraçada e parece natural para a Netflix. O xerife do branding dos tempos passados teria ficado chateadíssimo.
O militarismo do brandbook nasceu na época em que o pior que poderia acontecer a uma marca era um designer atrevido balançar suas estruturas gráficas. O inimigo agora é outro, é o esquecimento e a irrelevância.
E eu te falo quem o inimigo não é: as métricas. Tem gente que acha que métricas estão deixando tudo muito chato. “Não dá nem mais pra criar sem considerar o resultado!” Dizem eles. Também acho que não dá pra deixar os testes nos dizerem todas as cores e os elementos que vamos usar. Temos que saber quem a marca é e representar isso através da criação e quem vive de teste não anda pra frente, está fadado a repetir o que funciona. Mas precisamos saber quem a marca é a partir do que tem valor pro cliente.
Precisamos conversar com o cliente, precisamos dialogar com a cultura atual. E precisamos fazer isso sem que a marca se perca. Pra isso serve um brandbook, pra marca saber quem ela é.
Vamos ter que abrir mão do controle total. É difícil quando muita gente pega na marca, precisamos manter o cuidado. Também não é festa.
Cada vez mais vamos ver os clientes implementando a própria marca e esses mesmos clientes sentados nas mesas virtuais dos Hangouts dos nossos projetos e desenhando junto com a gente. A pessoa que tem contexto e que criou a marca está na empresa. A marca hoje vive nas pessoas e na cultura.
E o brandbook precisa limpar a poeira e ganhar formatos abertos, democráticos. Notion, site, Miro. A gente tem nossas apostas aqui na Brand Gym e estou ansiosa para ver como vamos abrir os brandbooks em todo o mercado. Sinto que a mudança já está na nossa porta, quem sabe ela chega ainda em 2022.Ah sim, eu tenho esse hábito também, de acreditar que o mercado todo vai evoluir em um futuro próximo. Otimismo, de todos os hábitos, é o que mais vale a pena manter.
Guta Tolmasquim é fundadora e CEO da Brand Gym, a primeira agência de branding especializada em startups e marcas de tecnologia do Brasil - agora está lançando o Purple Metrics, um software para medir branding com recorrência.