No fim de 2021 Keanu Reeves retorna aos cinemas como Neo, mais de 20 anos depois da estreia de Matrix. O longa-metragem das irmãs Wachowski foi o filme mais impactante da minha vida durante muito tempo. A ideia de vivermos presos em uma simulação que não nos permite conhecer a verdadeira realidade sempre me despertou ideias disruptivas, como se estivéssemos a todo instante próximos de uma verdade absoluta, com um pé atrás do que está à nossa volta. Ao final da história (vou aqui desconsiderar os outros títulos da trilogia, ok?), Neo aprende seu lugar no mundo e descobre como lidar com a realidade.
Março de 2020. A vida seguia seu rumo normal (ou da forma como a percebemos) quando o fato internacional do momento bate à porta de todo o país e revela uma outra realidade de forma instantânea e massiva. A pandemia de COVID-19 se instaura completamente no Brasil, abalando o sistema de saúde, o mercado de trabalho e as relações sociais. Nada passa ileso por isso.
Lá se vão 20 meses de um ano que insiste em não terminar. Fica a sensação de que o pior já passou, mas infelizmente ainda vemos altas taxas de internação e mortes por conta da doença. É difícil saber até quando estaremos vivendo o quadro de pandemia – ainda mais se considerarmos a proximidade das aglomerações de fim de ano e carnaval somando-se à natureza mutável do vírus –, mas com certeza tivemos tempo para refletir sobre como a COVID-19 nos afetou, individualmente e como sociedade.
O que eu gostaria de compartilhar com você são algumas percepções do meu ponto de vista profissional, como o design manager sentiu (e ainda sente) essa crise mundial. Longe de tentar esgotar o assunto, quero principalmente dividir os pontos que mais ressoaram para mim à medida em que eu engolia a pílula vermelha.
Se tornar gerente é colocar as pessoas à frente do trabalho que elas realizam. E isso é uma responsabilidade gigantesca. Os melhores resultados são obtidos quando a equipe está feliz, motivada e alinhada. Mas… o que fazer para alcançar isso em uma pandemia?
Para além do desafio de tentar construir esse ambiente equilibrado e de apoio, onde eu pudesse auxiliar as pessoas da melhor forma possível e amenizar essa situação singular, me vi colocando o máximo da minha atenção na equipe e esquecendo de cuidar da minha saúde mental no processo. E isso custou caro. Focar no trabalho e não olhar para dentro me fez atingir níveis altíssimos de ansiedade e stress, me fazendo visitar a emergência de um pronto-socorro com suspeitas de enfarto. Por sorte não foi nada muito grave, mas serviu como um grande alerta. Quando as máscaras de proteção caem automaticamente, é preciso colocar a sua primeiro para estar em condições de ajudar quem está ao seu redor.
Uma jornada de exames e consultas médicas me encaminharam para enfim começar a fazer terapia. Na carona das mudanças de hábito, voltei a cuidar também da saúde física, negligenciada nos primeiros meses da pandemia. Aprendi a duras penas que não adianta focar em somente um dos lados, corpo e mente trabalham juntos e estar bem significa equilíbrio entre as partes.
Sei que sou um grande privilegiado. Ninguém da minha família sequer se contaminou, não perdi emprego nem tive cortes de salário, pude rapidamente partir para o modelo de trabalho remoto. Claro que passei por muitos momentos difíceis – a paranoia com a limpeza e o distanciamento, conciliar trabalho com cuidar da casa e da minha filha –, mas nada que eu possa comparar com os desafios impostos para a maioria da população brasileira.
Analisando nossa profissão e outras diretamente relacionadas, tenho a sensação de que sofremos muito menos que outros segmentos do mercado. É claro que muita gente que trabalha com design sofreu – até porque o design não é um fim em si, projetamos experiências para as mais diferentes indústrias e aquelas que foram mais impactadas realizaram cortes. Ainda assim, percebo que nossa área foi bem menos afetadas que outras. Com maior facilidade em migrar para o remoto que outras profissões, ser designer (digital) tem sido conviver com mais oportunidades de emprego, principalmente para quem tem mais experiência. Contratar durante a pandemia tem sido um desafio grande, pois o mercado de tecnologia está muito aquecido. Me arrisco a dizer que, neste quesito, só perdemos para desenvolvedores.
É interessante analisar esse cenário quando pensamos nas pessoas que buscam migrar para UX e design de produto. Com a oferta ainda crescente, migrar é possível e em qualquer idade. Porém, nem tudo são flores: um dos maiores entraves para fazer a migração era e continua sendo ter a primeira oportunidade. Se antes da pandemia isso já era difícil, o modelo remoto (onde muitas empresas ainda não se sentem seguras com colaboração assíncrona e à distância) tornou essa barreira ainda mais dura de ser superada.
Entre os diversos hábitos que se tornaram corriqueiros para uma boa parte da população está o das chamadas de vídeo. Um recurso que já estava presente em todos os celulares salvou a relação de muitas famílias. E claro, de muitas empresas.
Porém, na tentativa de transpor a realidade do modelo presencial para o remoto, muita gente acabou com a agenda repleta de horas e mais horas de Zoom, Meet e Teams. Aquela velha história de que “esta reunião poderia ter sido um e-mail” ficou escancarada, mas a dificuldade de passar do modelo clássico para uma rotina assíncrona inicialmente gerou essa overdose de calls, levando as pessoas a sofrerem de “Zoom fatigue”.
Como manager, senti isso na pele. Não abri mão de reuniões de 1:1 e alinhamento com a equipe, por mais que no somatório dos compromissos a maior parte da minha semana ficasse consumida por chamadas de vídeo. Entendo que é viável transportar muito da gestão para o formato assíncrono, mas lidei melhor mantendo estes eventos com minha equipe via calls. Muitas relações de trabalho nasceram e se desenvolveram durante a pandemia, e as chamadas de vídeo foram vitais para buscar uma aproximação maior com as pessoas.
As contratações, nesse quesito, foram um assunto à parte. Com a introdução definitiva do modelo remoto para contratações, tornou-se muito mais fácil acessar e contratar pessoas de qualquer lugar. As chamadas em vídeo tornaram o processo consideravelmente mais rápido. A pontualidade, uma vítima do trânsito dos grandes centros, ganhou ares britânicos. O porém dessa mudança esteve nas dificuldades do “home office”: entrevistas sofrendo com sinal de internet, problemas de som, obras e reformas na vizinhança, familiares e animais de estimação participando das chamadas. Apesar de tudo isso atrapalhar, mantive o bom humor e busquei sempre tranquilizar as pessoas para que elas pudessem falar sobre seu trabalho independente de qualquer tipo de interrupção. Conversei com muita gente interessante durante este período, contratamos profissionais incríveis neste modelo. Acho que baixar a guarda e evitar a formalidade me ajudou a tornar o processo mais agradável e produtivo para os dois lados.
Junto com as calls também se estabeleceu o uso simultâneo e colaborativo de algumas ferramentas. Pude participar de muitas sessões de qualidade usando as soluções do Google, o Miro, o Figma… sinto que esse espírito de colaboração veio para ficar, de uma forma bastante prática e sem qualquer obrigatoriedade do presencial para alcançar bons resultados.
De forma geral, as empresas vem passando por uma transformação de processos e organização há um bom tempo. O que a pandemia fez foi fazer dessa necessidade uma urgência. Lugares que já trabalhavam com algum regime remoto costumavam ter na autonomia um de seus grandes diferenciais.
Apesar de operar no presencial, eu já trabalhava em uma dinâmica de trabalho sem controle hierárquico e microgerenciamento. Isso sempre fez parte da minha visão de gestão: tratar a equipe de design como especialistas, pessoas responsáveis pela definição de experiência e, por conta disso, donas de como executar suas tarefas. Empoderar as pessoas e tratá-las como adultas sempre me pareceu o único caminho viável. Logo, quando me vi obrigado a gerenciar à distância, apenas mantive minha posição de dar espaço e os recursos necessários para que minha equipe fizesse o trabalho dela, que não é (nem nunca foi) fazer o que eu digo ou ficar prestando satisfação de como realizam suas tarefas.
Em contrapartida, sei de muitas empresas que sofreram muito com a mudança brusca. O mercado ainda está cheio de lideranças que acreditam no mito da chefia controladora, de estar com o olhar fixo nas pessoas para o que elas fazem ou deixam de fazer, de enxergar as funções táticas como simples executoras de ordens. O resultado disso em um mercado aquecido é muitas demissões: empresas dispensando pessoas por não saber como lidar com esse novo cenário e profissionais abandonando relações de trabalho abusivas em busca de oportunidades mais justas.
Por mais que a pandemia tenha sido uma experiência muito desafiadora para mim, dar autonomia para minha equipe definitivamente não foi um problema. Pode inclusive ter sido um dos pontos que me mais me ajudaram a ser funcional nas horas difíceis.
Hoje já não acompanho os números da pandemia diariamente. Não passo mais horas lavando as compras, me permito conviver com a família – devidamente vacinada, é importante ressaltar. Ainda assim, mantenho o uso da máscara e as mãos limpas, nunca se sabe quando e onde um Agente Smith vai aparecer.
Os desafios como design manager continuam. Passado todo este período distante, continua fazendo parte da rotina diária manter o ambiente de trabalho saudável, reforçar comunicação e colaboração com a equipe, buscar formas de nos tornarmos mais produtivos de forma assíncrona. Isso tudo enquanto eu ensaio voltar para o escritório (aos poucos). Trabalhei de lá duas vezes desde que a empresa montou um protocolo de retorno gradual, e o maior desafio nesse contexto foi pegar o metrô onde – por quê? – ainda existem pessoas viajando sem máscara ou com o modelo “máscara de queixo”. Talvez já tenham acordado da Matrix e o estranho sou eu…
Enquanto a pandemia segue, tento fazer uso destas reflexões para estar mais preparado para a nova realidade que nos aguarda ali na frente. Ainda não sei como Neo vai lidar quando perceber que está novamente dentro de uma simulação, irei ao cinema para descobrir com ele. De máscara, claro.
Design manager na VTEX, instrutor de UX no Le Wagon. Trabalho em equipe é a melhor maneira de escalar produtos relevantes e melhorar a vida das pessoas. Comunicação não-violenta, colaboração e autonomia são meus ingredientes favoritos.