História, reflexões e muitas visões que se conectam além de 2022
O ano é 2021 (o título até poderia ser de uma graphic novel dos X-Men). O nosso mundo começa a vislumbrar um cenário pós Pandemia. O designer abre os olhos, olha a sua volta e acha que está sonhando: um mercado aquecido e repleto de oportunidades, inúmeras vagas em aberto e sem mão de obra qualificada para preenchê-las, empresas assediando funcionários da concorrência (e sofrendo o mesmo em seus quadros), propostas agressivas com salários em alta, uma abundância de títulos e cargos sendo criados em todos os níveis corporativos, novas áreas de atuação surgindo e outras especialidades se consolidando e, finalmente, times de design crescendo de forma acelerada em escala global. Não é um sonho. O cenário é real.
Mas e a prática, também é real? Será que o designer está apenas surfando numa onda que vai acabar mais adiante, sem pensar no que pode acontecer? Talvez, pior, esteja apenas atuando como um bom ator, conforme provoca Tanya Snook, fingindo que faz design mas sem ter a permissão, de fato, para fazer o que deveria ser feito, sem poder fazer pesquisa, sem envolver o usuário (ou quem de fato vai usar), sem testes - um processo de faz de conta (chamado de design performático). Assim como Jesse James Garrett questionou de forma contundente os rumos da área em um artigo recente. Ou como Mike Monteiro que escancara a nossa responsabilidade enquanto designers quando ignoramos a ética e os impactos das soluções que criamos. O que o designer está fazendo pelo Design, pela sociedade e pelo mundo?
"Você é responsável por aquilo que coloca no mundo. E você é responsável pelos efeitos que essas coisas têm sobre o mundo"
- Victor Papanek
Para aqueles que são menos experientes na área, deve ser difícil de imaginar que essa realidade não existia há cerca de 5 anos. A tendência é que o atual cenário seja mantido e até ampliado nos próximos anos apesar da dicotomia entre a Era de Ouro do Design, e as apostas pessimistas de uma bolha (especialmente na área de UX). Teremos algo parecido com o da Internet, como há 20 anos atrás?
Como o designer chegou até aqui? De quem é a responsabilidade pelo atual momento do Design? O quanto conhecemos da história do design no Brasil? Qual é o perfil de quem faz Design hoje? Afinal não existem mais fronteiras em um mundo globalizado e pós pandêmico. Para onde estamos indo com o mercado em ponto de ebulição? O questionamento deveria ser coletivo.
Para tentar prever o futuro, é preciso conhecer o passado e entender o nosso momento atual. Heródoto e Confúcio, entre outros pensadores e filósofos, desde a Antiguidade já abordavam a importância do conhecimento da história enquanto fator determinante para o sucesso (ou fracasso).
O quanto realmente conhecemos sobre a história recente do Design, enquanto disciplina em construção e como diferencial para os negócios? Como analisar tudo o que tem sido impactado, desde uma infinidade de produtos aos mais diversos serviços que impactam diretamente no cotidiano e na experiência de consumo em geral da sociedade? Além da falta de maturidade e ética profissional, precisamos nos preocupar e combater problemas na área como: dark patterns, linguagem manipulativa, tecnologia viciante, mau uso de dados, stalking, conteúdo afiliado, falta de diversidade, racismo, entre outras práticas negativas.
Designers não fazem mágica. Não existe ideia ou solução mirabolante sem referência. Nada se cria, mas se transforma. O designer precisa observar, questionar e entender o contexto. Afinal, falar de design é falar de resolução de problemas. É necessário desconstruir para construir, quebrar em pedaços menores para analisar os diferentes elementos, relacionar e conectar os pontos. Design é sobre criar alternativas, experimentar e testar hipóteses, é ouvir e entender, por exemplo, o usuário, o cliente, o ser humano, no centro de todo o processo (talvez o foco seja nas atividades ou nos objetivos de negócio) para tentar chegar a uma solução. O design é também sobre contar histórias, sobre experiência, estética, sentimentos e sensações (Lupton, Ellen - Storytelling, 2017). O design é ser ao mesmo tempo, racional, sistêmico, social, político e também emocional, dentro da natureza da experiência humana que é complexa e plural.
Não há fórmulas exatas ou receitas que funcionem da mesma forma. Design é sobre processos e metodologias, mas também pode ser instintivo. E isso vem evoluindo constantemente. John Heskett, em seu livro Desenho Industrial (1997) escreve que "A natureza exata desse processo de design é infinitamente variada, portanto, difícil de resumir numa simples fórmula ou definição. Pode ser o trabalho de uma só pessoa ou de uma equipe trabalhando em cooperação; pode surgir de um surto de intuição criativa ou de um juízo calculado baseado em dados técnicos e pesquisa de mercado… Restrições ou oportunidades podem ser fornecidas, entre outros fatores, por decisões comerciais ou políticas, pelo contexto organizacional em que um designer trabalha, pelo estado do material disponível e pelas instalações de produção ou por conceitos sociais e estéticos predominantes: a variedade de condições possíveis é imensa."
Recentemente li um artigo sobre a história do design e lembrei das matérias de História da Arte e do Design que foram muito importantes durante os primeiros períodos da faculdade. A nossa evolução enquanto seres humanos e sociedade passa pela capacidade de construção, comunicação, adaptabilidade e interação. E talvez o mais importante seja a capacidade de imaginação e criação, algo fundamental, em todas as profissões, mas essenciais para a arte e para o design.
Analisando o quão abrangente e complexa é a área de estudo do Design, vale destacar alguns marcos importantes. E essa jornada começa na Pré-História onde a escrita foi inventada pelos Sumérios, passando pelo desenvolvimento dos alfabetos com os Gregos e Romanos, até a Iluminura e seus manuscritos (termo referente aos livros produzidos entre o Império Romano e a Idade Média) e o primeiro livro impresso em 1450.
A seguir, veio o período da Renascença no final do Século XV com os livros ilustrados e a consolidação da ilustração. Em 1637, marca-se a origem dos gráficos de informação por René Descartes, através da criação da coordenadas Cartesianas, Mais tarde, em 1786, um outro matemático desenvolveu o gráfico de barras e de linhas. Alguns anos mais tarde, surge o gráfico de pizza.
O Séc. XIX trouxe a evolução da prensa e a popularização da impressão com a Revolução Industrial. Nesse período, o processo manual foi pouco a pouco perdendo espaço com a criação do Linotipo e a criação da tipografia por Gutenberg. E foi durante esse fértil período, que apareceram diversos movimentos como, por exemplo, as primeiras ilustrações voltadas para crianças e livros relacionados, na Era Vitoriana.
Nos EUA, com a fundação da Harper & Brothers, definiu-se a base do que viria a ser o "design editorial". Na Inglaterra, emergiu o movimento Arts & Crafts se opondo ao sistema de produção de massa e a favor da produção de peças únicas e de qualidade, com William Morris sendo a figura central desse movimento (e um dos personagens principais na história do Design). Ainda houve o movimento Art Nouveau na França, a manifestação da arte através da arquitetura e da moda, a Escola de Glasgow e o surgimento do sistema de grid e do que é considerado o primeiro projeto completo de identidade visual.
E chegamos ao século XX, o período Modernista com uma enorme influência de estilos artísticos que influenciaram profundamente o Design, tais como, Cubismo, Futurismo, Dadaísmo, Surrealismo, Expressionismo e Minimalismo.
A Primeira Guerra Mundial trouxe a utilização do pôster como mídia principal da propaganda - a comunicação e o design passam a ter papel político. A Bauhaus é fundada em 1919, em um cenário pós guerra, transformando profundamente a forma como o Design atual seria influenciado a partir de então, tornando-se o berço da teoria do Design ocidental.
No Brasil, segundo Rafael Cardoso, uma disciplina com o título de "Desenho Industrial" já era ministrada desde 1850 na Academia Imperial de Belas Artes (RJ), mesmo com a falta de consciência do design (como conceito, profissão e ideologia); não sendo relacionado às atividades projetuais de produção, nem ao consumo em escala industrial.
Em 1951, foi fundado o Instituto de Artes Contemporâneo (IAC) que tinha o objetivo de preparar profissionais capazes de projetar objetos compatíveis com a cultura industrial, formando a primeira geração de designers brasileiros. Nesse período, houve o predomínio do estilo modernista de design, fruto da influência de ex-alunos da Escola de Ulm. Destacam-se Aloisio Magalhães, Alexandre Wollner, Cauduro e Marino além de Ruben Martins. A ESDI (Escola Superior de Desenho Industrial) foi fundada em 1963. A graduação em Desenho Industrial foi finalmente reconhecida por decreto, na PUC Rio em 1977 e na UFRJ, apenas em 1979.
A Escola de Nova Iorque, a partir da década de 40, teve influência marcante nos EUA, com com sua pegada intuitiva, pragmática e experimental - com Saul Bass, George Lois e Paul Rand, o que era um contraponto ao design europeu, considerado muito estruturado e teórico - Dieter Rams, Dietrich Lubs, Hans Gugelot, James Dyson - o cinema, moda, arquitetura, editorial e produto tiveram grandes avanços dos anos 50 aos 90.
O período do Design Pós-Moderno, influenciado pela ilustração como narrativa e a influência com a evolução da fotografia e suas novas abordagens.
É importante ressaltar que esse resumo representa um recorte da visão eurocêntrica e americana, e deixa de fora a participação de outras culturas, igualmente importantes para a construção da área do design que existe atualmente. Cito aqui a influência relativamente recente do design japonês através de marcas icônicas como Yamaha, Canon, Nintendo, Honda e Sony; na Coréia com as emergentes Samsung, Hyundai, LG e Kia, além da China como maior produtor industrial mundial e concentrando gigantes da tecnologia como Alibaba, Tencent, Huawei, entre tantas outras.
Quem é o designer no Séc. XXI em plena era da Revolução Digital? Qual o conhecimento que tem sido produzido desde que o Design evoluiu do “Arts & Crafts” - para o que é hoje de fato? E essa evolução, talvez mais para uma revolução, do que estamos testemunhando hoje no Design, é algo que jamais se imaginou.
Concordo com Heskett conclui que "ao longo de sua evolução histórica, o papel do desenho industrial foi tornar a tecnologia utilizável em formas acessíveis e compreensíveis para o maior número de pessoas." - a atividade especializada do designer, sempre fez parte das áreas de "pesquisa e desenvolvimento", associada à invenção e definição de formas (e soluções) distintas dos outros processos de trabalho.
A popularização dos computadores pessoais nos anos 80, junto com o surgimento da Internet na década seguinte, foi responsável por uma mudança completa de paradigma; o papel que antes era reservado ao profissional altamente especializado da Revolução Industrial, começou a ser desempenhado por qualquer um que tivesse acesso às novas tecnologias, dando origem a um novo tipo de designer. Em resumo, a natureza elitista do design vem sendo alterada, talvez com mais ganhos do que perdas.
Novas mídias, novas ferramentas, novas possibilidades de atuação. Os primeiros designers, grandes nomes que são reconhecidos hoje como precursores da área, eram artesãos, pintores, escultores, artistas gráficos, poetas, marceneiros, inventores - assim, tivemos a evolução do profissional multidisciplinar ligado a essas disciplinas, junto com todas as ferramentas e processos que foram surgindo. Ao longo dos anos, a tecnologia influenciou a forma de trabalho, e outras disciplinas como comunicação, antropologia, psicologia, marketing, entre outras, passaram a fazer parte do repertório contemporâneo. Nova roupagem, novos rótulos, novos tempos!
O que antes era ofício exclusivo de um caligrafista, por exemplo, como a confecção de um convite de casamento, hoje é uma atividade corriqueira que pode ser feita, por qualquer pessoa, em ferramentas digitais populares e gratuitas. O mesmo paralelo acontece hoje com o amplo acesso às impressoras 3D, frameworks de programação e interfaces de voz, kits tecnológicos de eletrônica, sensores de todos os tipos, robótica avançada, big data e inteligência artificial, entre tantas outras possibilidades de materiais e ferramentas. A geração maker evoluiu para além das salas de aula tradicionais e os antigos círculos de intelectuais.
Pensando em alguns marcos na literatura do Design, Don Norman, em 1988, lançou um livro que falava sobre Usabilidade. Em 1993, o mesmo Norman, cunhou o termo User Experience e depois explorou o conceito de "design afetivo". Alan Cooper, em 1995, publicou o primeiro ensaio sobre Design de Interfaces (e que viria a ser a base do About Face, sobre design de interação). Em 1999, o Peter Morville e Louis Rosenfeld lançaram "a bíblia" sobre Arquitetura da Informação, tudo isso em meio ao boom da Internet e com a ameaça do "bug do milênio" na virada do século XX.
Por sorte, a matrix passou ilesa e os designers puderam continuar a sua luta contra o sistema, que em seu contexto, apenas enxergava analistas, programadores e engenheiros em seus quadros - o designer, descendente do artista, servia para cuidar apenas do "look and feel" dos negócios e seus produtos.
Aliás, Gilberto Strunck em seu livro, Viver de Design (1999) fala sobre o desconhecimento da área e falta de oportunidades no mercado de trabalho. Quantos designers já trabalharam com o ofício mas continuavam sendo denominados na folha como programadores, desenvolvedores e analistas… o fato é que a indústria tech foi fundada por engenheiros, com sua visão de mundo e metodologias próprias. Em 2002, Garrett lançou a base de como trabalhar com UX em projetos web, através do famoso conceito dos "elementos da experiência do usuário" e o universo da arquitetura da informação.
Há um outro ponto importante e que deve ser bem explicado, que tem causado certo desentendimento. Design não é arte. Design não é UX. Design engloba um pouco desses dois universos. E isso tem que ficar claro para todos os envolvidos na área. O designer não é o único profissional responsável pela experiência do usuário. Isso é um mito. Existe uma enorme diversidade de profissionais que atuam em conjunto e contribuem para uma boa experiência de uso. Ser designer não é ter um diploma em Design (gráfico, industrial ou qualquer outra especilização); qualquer profissional que projete soluções faz design de alguma forma.
Inúmeras instituições renomadas foram dedicadas ao ensino do design mundo afora, como o Royal School of Art (Inglaterra, 1930), School of Visual Arts (EUA, 1947), Istituto Europeo di Design IED (Itália, 1966), Hyper Island (Suécia, 1996), Norman Nielsen Group (EUA, 1998), General Assembly (EUA, 2011), IDEO U (EUA, 2015). Se traçarmos uma linha do tempo até hoje, o que pode ser observado é a explosão de cursos e plataformas no formato EAD, fora os processos, serviços de mentoria e formação quase que personalizados.
O acesso ao conhecimento nunca esteve tão fácil, assim como a oferta de cursos nunca foi tão grande. O mesmo vale para a quantidade de vagas em aberto que se multiplicaram de forma exponencial nos últimos anos e que não conseguem ser preenchidas. Mas e a qualidade da formação desses novos profissionais? O quão atualizada estão as grades curriculares das instituições?
Cursos que são vendidos com base nos altos salários e a promessa de formação de especialistas em apenas algumas semanas de estudo. Afinal, para onde estamos indo e qual é o nosso papel?
O designer contemporâneo parece imerso em uma realidade paralela, um certo estado onírico, confuso com o absurdo do País das Maravilhas, com chapeleiros malucos e gatos invisíveis, com reis e rainhas decorativos, um baile de máscaras onde o glamour do título conta mais do que a solução aprovada pelo Hippo decadente.`
Sem se dar conta que o futuro depende da nossa empatia, o designer precisa acordar do deslumbramento antes que seja tarde. Ser designer não significa ser especial. Não se atentar a importância do ofício e suas implicações para a sociedade atual e para o futuro, talvez seja crítico para a manutenção desse cenário no curto prazo.
Testemunhamos hoje uma aceleração preocupante da vida cotidiana, com a falta de tempo e o excesso de informação. As relações são frágeis e descartáveis, assim como os produtos projetados pela obsolescencia, sem a necessária preocupação com a escassez de recursos e o impacto no meio ambiente. Some-se a isso os problemas sociais como guerras, miséria, fome e todo tipo de preconceito social, econômico e racial. A teoria se preocupa com o usuário, a prática com o design (seja lá o que for), e quem cuida do ser humano em sua essência? O futuro demanda abordagens mais humanas, acessíveis e inclusivas.
Não tenho as soluções mas Mike Monteiro, indica caminhos e reflexões para tal.
Sem dados e informações relevantes para uma análise crítica e um debate sólido, só restará argumentos frágeis e achismos recheados de vieses. Afinal, em muitas áreas, os maiores problemas não são causados pelo que não sabemos mas pelo que achamos que sabemos de fato - palavras do mestre Alan Cooper.
Se existem muitas perguntas, certamente não sabemos todas as respostas. O designer precisa do seu ganha-pão, assim como todo profissional, almeja se realizar, evoluir na prática e ajudar negócios a prosperarem. Fazer design passa também por influenciar positivamente o seu entorno e fazer do mundo um lugar melhor. O designer do futuro está paralisado diante do crespúsculo de outrora, vislumbrando um horizonte desafiador entre tantos futuros possíveis. Ainda dá tempo de mudar. A boa notícia, é que depende apenas de cada um de nós participar dessa nova Era do Design(-verso).
"To design is to influence."
- Mike Monteiro.
Graduado em Design Industrial pela UFRJ, especialista em Interaction Design pela UC San Diego e em Comunicação pela PUC-Rio, com MBA em Marketing pela UFF. Há cerca de 20 anos trabalhando com design e tecnologia; transitando do gráfico ao digital, da pesquisa aos testes, do serviço ao produto - em busca de soluções que possam traduzir o melhor do Design e de experiências mais significativas, humanas e éticas. Remador de canoa polinésia, apreciador de vinhos, fotógrafo e dublê do Michael J. Fox. Atualmente lidero a iniciativa de Design Operations no time global da Liferay e me dedico ao ensino de UX, além das discussões sobre carreira, maturidade e prática do Design.