Imagine que você é convidado para um jantar na casa de um possível interesse amoroso. Trata-se de uma pessoa que você não conhece direito, mas que sente curiosidade sobre a vida dela. Ao chegar na casa da pessoa, você se depara com um ambiente bagunçado, comida por fazer e um video-game ligado. Ao longo desse encontro, você teve de pedir pelo básico e ajudar a pessoa dona da casa a fazer um serviço que era esperado de ter sido feito antes de você chegar; teve de ignorar os problemas que claramente estavam acontecendo e, no final do dia, espera-se que vocês voltem a se encontrar e, a cada dia mais, estabelecer um relacionamento com essa pessoa.
Essa é a impressão que fica do primeiro encontro: desastre. Mas imaginemos que você tenha um coração bom e resolva dar uma segunda chance. O segundo encontro se dá da mesma maneira, com exceção de que, além do videogame, a pessoa sugere um jogo de tabuleiro para jogarem juntos.
Toda vez que existe uma demanda na nossa vida pessoal, geralmente temos a tendência de escolher entre duas atitudes distintas: encararmos o problema de frente ou tentarmos escondê-lo com soluções menores, mais administráveis. As decisões de produto ocorrem de forma muito semelhante, mas, diferentemente do que se espera do lógico, elas passam por tantas opiniões de stakeholders e prazos que dificilmente conseguimos efetivamente focar no que é preciso ser feito, então vamos solucionando firulas no meio do caminho e tramando estratégias secundárias para "manter o convidado em casa".
E o que seriam essas firulas? Bom, elas se disfarçam bem e têm vários nomes: estratégias voltadas para gamificação como mini games, convide seus amigos, descontos, cupons, compartilhamento, indução de produtos exclusivos… Enfim, todos os recursos de engajamento que poderíamos cortar do produto sem que ele perdesse sua funcionalidade. Através deles, a retenção de usuários no seu produto não baixa tanto, mas não resolve o problema: estaremos colocando cerejas em cima de um bolo solado.
Para aplicarmos ferramentas e estratégias de engajamento de maneira mais assertiva para o nosso produto, devemos, antes de mais nada, construir uma base sólida. Abraham Maslow (1943), psicólogo moderno, mostra claramente essa distinção de prioridades com a Pirâmide de Necessidades Humanas desenvolvida por ele.
Figura 1: Pirâmide de Necessidades Humanas de Maslow. Retirado de: Motivação: Pirâmide de Maslow. Disponível em: <https://www.alura.com.br/artigos/piramide-de-maslow>.
De maneira bem resumida, temos:
O que isso significa no dia-a-dia? Que qualquer pessoa que tenha fome, não dará a devida importância a estar em um ambiente seguro; Que qualquer pessoa que não sente segurança no espaço em que ocupa, não terá como prioridade o prestígio nesse ambiente e por assim em diante.
Em produto é a mesma coisa: não é nossa prioridade rodar a roleta de prêmios do dia no app da Shopee se não soubermos onde está a nossa encomenda. Não vamos nos importar com o cupom do clube Ifood, se não tivermos certeza de que a entrega chegará no horário certo. Não teremos interesse em ter um pedacinho do Nubank se não confiarmos que o nosso dinheiro está seguro. Faz sentido?
E por enquanto, o que podemos fazer com o que temos? Uma boa estratégia é colocar as famosas Heurísticas de Usabilidade de Nielsen debaixo do braço, ou ainda, dar uma olhadinha nas Leis da Simplicidade, propostas pelo maravilhoso John Maeda (2007). Com elas, conseguimos um produto conciso e a formação de uma base mais sólida, e, assim, adicionarmos o que acharmos mais adequado para estratégia de negócios em cima.
Ah! E não levem esse texto a mal, ok? Estratégias como gamificação e design emocional, quando bem utilizadas em produtos mais maduros, são ótimas opções; Elas tendem a facilitar o processo de aprendizagem, hábito e apego com o que projetamos. Aumentando o uso, consequentemente aumentamos o vínculo. Essas estratégias têm sido utilizadas até antes dos seres humanos. Segundo Huizinga (2014), os mamíferos brincam de luta na infância como forma de treinamento para os combates sérios na fase adulta. Diminuindo os riscos, conseguimos aprender mais facilmente e construir um repertório relativamente vasto sem arriscarmos coisas importantes. Conforme vamos crescendo, brincar se torna secundário, e tomamos noção da responsabilidade que as nossas ações têm nos que nos rodeiam. Essa vontade continua ali, em algum lugar, e nos ajuda muito quando vez ou outra precisamos dela.
É preciso reconhecer que nem sempre essas estratégias serão possíveis de serem executadas, mas tê-las em mão facilita bastante o processo criativo e de priorização de features, principalmente quando o contato com o usuário final e o investimento em pesquisas se encontra distante do ideal (o que, convenhamos, é uma realidade latente nas startups brasileiras). Apesar de querermos parecer diferentões e inovadores, trazendo criatividade e engajamento aos nossos produtos, é sempre bom lembrar que, como designers, ainda temos bastante dever de casa para fazer antes de pensarmos em diversão.
- Huizinga, J. (2014). Homo Ludens: A Study of the Play-Element in Culture 346p.
- Maeda, J. (2007). As Leis da Simplicidade: Vida, Negócios, Tecnologia, Design. 100p.
- Maslow, A. H. (1943). A theory of human motivation. Psychological Review, 50(4), 370-96.
- Nudge: Improving Decisions about Health, Wealth, and Happiness
- Drive: The Surprising Truth about What Motivates Us
- Leis da Psicologia Aplicadas a UX: Usando psicologia para projetar produtos e serviços melhores
- HOOKED (ENGAJADO): Como construir produtos e serviços formadores de hábitos
- Actionable Gamification: Beyond Points, Badges, and Leaderboards
- Gamification, Inc. - Como reinventar empresas a partir de jogos
- Fail to Learn: A Manifesto for Training Gamification
- Gamification by Design: Implementing Game Mechanics in Web and Mobile Apps
Isabela é Product Designer pela Pipefy, graduada pela UFU, pós-graduada em UX Design e mestranda em Design pela Unesp. Adora discutir assuntos diversos como Gamificação, Design Emocional, ativismo de minorias em tecnologia, quebra-cabeças e plantas.