Fiz uma entrevista de emprego hoje¹, e nela eu falei: “tem 20 milhões de brasileiros passando fome. Não dá pra não levar isso em consideração, seja em que empresa for”. Por que eu falei isso em uma entrevista de emprego tem bastante relação com o tema do Design 2022, que é “design para o próximo ano”.
Ninguém sabe o que vai acontecer no próximo ano. Muito menos nas próximas décadas. Mas dá para ter uma ideia de para onde estamos indo. O aquecimento global bate na porta. Os eventos climáticos extremos estão ficando mais frequentes e mais intensos (inundações, nuvens de poeira, ciclones, etc). As pessoas estão revirando lixo. As pessoas estão brigando por ossos de bichos.
Isso, gente, é design.
Porque não é obra do acaso. Se chegamos nisso, é porque foi isso que criamos. Através de séculos de processos excludentes. O que construímos foi um sistema que serve apenas para poucos e que elimina a diversidade. Acaba com a própria vida.
Eu passei os últimos anos estudando metodologias de design de sistemas vivos, que chamo de biossistemas. Entre as coisas que estudei estão a permacultura e a agrofloresta — englobadas por uma ciência/disciplina/área de conhecimento chamada agroecologia. Essas metodologias fornecem ferramentas para que se desenhem sistemas mais inclusivos e menos nocivos para a vida. Aqui, no âmbito da agricultura. Pois a agricultura tem muita relação com o estado atual das coisas. Pense numa monocultura de soja. Aliás, corre ali no Google, digita “plantação de soja” e olha as imagens. É um mar de uma planta só. Muito quilômetros quadrados de apenas uma espécie. Agora pense numa floresta. Não existe monocultura na natureza. Uma floresta, um mangue, uma restinga, uma caatinga, o cerrado, o pampa: a diversidade abunda. Para manter aquela plantação de soja daquele jeito, sem nenhum inseto e nenhuma outra planta a não ser soja, dá-lhe semente transgênica e agrotóxico. A moderna agricultura de larga escala, o famoso agronegócio, é um dos principais vetores da barafunda climática em que estamos metidos. É necessário e urgente transformar o jeito pelo qual ocupamos e manejamos o solo dessa linda planeta chamada Terra, que é o nosso corpo.
A agroecologia e as metodologias de design de biossistemas que nela se encaixam propõem uma agricultura que não luta contra os ciclos naturais, pelo contrário, se alinha a eles e procura reproduzi-los. Uma das principais características dos sistemas agroecológicos é a biodiversidade. Todo mundo, várias espécies, convivendo juntinhas. Cada uma dando acolhimento e suporte para a outra.
Então voltamos ao começo do texto. O mundo está desse jeito por design. Não tem mágica: tudo é consequência. Se a gente quer sair disso, vamos ter que desenhar outra coisa. Outro jeito. Outros modos de vida. Outros mundos. A agroecologia ensina que é possível, e aponta como: se alinhando à vida, e não tentando eliminá-la.
O que temos visto, com muito mais ênfase nos últimos anos, são tentativas reiteradas de aniquilação. Eliminação de direitos, de corpos, de culturas. O que é o agronegócio senão a morte de espécies, de rios, de saberes humanos, de subjetividades animais? O que é o governo daquele que não ouso dizer o nome -- porque me dá nojo -- senão ausência de alegria, mortandade, genocídio? O que temos visto é o resultado de um sistema que vem sendo desenhado há pelo menos 500 anos, desde que o colonizador chegou nessas terras que antes eram chamadas de Abya Yala e habitadas por pessoas humanas e não humanas com culturas riquíssimas. Digo pelo menos porque a supremacia branca patriarcal é ainda mais antiga (vide a inquisição promovida pela igreja católica, que matou milhares de mulheres na idade média).
Se a gente quer a vida e não a aniquilação, precisamos começar a desenhar sistemas que acolhem e suportam as existências terrenas. O design para o(s) próximo(s) ano(s) tem que ser assim. Porque já deveria ter sido. Faz tempo. Essa é uma tarefa pra ontem. Talvez não dê mais tempo de reverter a emergência climática. Mesmo assim, precisamos começar a criar novos modos de vida na Terra. Se não por nós, pela Terra.
Perdoem-me por trazer o gostinho do apocalipse para as suas bocas. Eu, que já escrevi um ensaio chamado “Somos os novos dinossauros” (adivinha o que eu digo nele), não sou conhecida exatamente por passar pano pro capitalismo. Sim, amores, chegou aquele momento em que vou lembrar da frase do filósofo Mark Fisher: “é mais fácil imaginar o fim do mundo do que o fim do capitalismo”. Detesto ser pessimista, e defendo que não sou. Afinal, sigo aqui, cultivando comida, escrevendo, e desenhando novos modos de existência. Se pessimista fosse, já tinha desistido, concordam?
Não vou entrar na questão de como podemos desenhar novos mundos trabalhando dentro da barriga da besta, nos nossos ótimos empregos em companhias listadas na bolsa de valores. Esse é um assunto para outras dezenas de textos e de debates (eu acho que não tem respostas nem soluções, só elocubrações). Mas, afinal, na entrevista de emprego que fiz hoje, falamos sobre a fome que voltou a assolar o Brasil. Se falamos sobre isso é porque há pelo menos um desejo das pessoas dentro das empresas de gerar não apenas lucro, mas também impacto social. Fazer alguma diferença na vida das milhares de pessoinhas que passam mal no Brasil do ano II da primeira pandemia do século XXI.
A essa altura, todo mundo que pensa (especialmente os designers) já deve ter chegado à conclusão de que a vida é política. Todos os nossos atos e escolhas são políticas. Nossos corpos e existências são políticas. Se você acha que não, é porque tem alguém/alguma ideologia fazendo política com você. Então, para concluir este texto, vou me ater ao mais importante ato de design para o próximo ano.
Que é VOTAR.
Apertar o dedo com consciência naquela urna eletrônica em novembro de 2022 é parte de desenhar novos modos de viver na Terra. A gente precisa começar a sair do atoleiro. Estamos traumatizados. Aliás, estamos vivendo em permanente estado de estresse pós traumático: todo dia, ao abrir o jornal, é um dedo em uma ferida diferente. Então, a otimista apocalíptica aqui não vai sugerir nada além disso, por enquanto. Primeiro, o básico. Mudar o rumo do governo é a nossa principal tarefa, como designers e como terranos², para o próximo ano.
1. Escrevi este texto em um dia de novembro de 2021
2. Terranos é como o filósofo Bruno Latour chama os viventes humanos que se propõem a viver de novos modos, alinhados ao planeta, em tempos de antropoceno -- em contraposição à ideia de humanidade clássica
Alessandra Nahra estudou jornalismo, virou arquiteta de informação nos anos 2000, e atualmente trabalha como UX Researcher. É pesquisadora de agroecologia, mestranda na Faculdade de Saúde Pública da USP, praticante de agricultura de encantamento com a vida, interessada em alianças interespecíficas. Tem dois livros publicados: O Chão que me Fez (2020) e Todos os cachorros que eu abandonei (2021). Desde o início da pandemia vive na Guarda do Embaú (SC) com o cachorro Heitor e os gatos Jupiter, Guri, Noel Rosa, Preta Maria e a Vênus na memória.