Esse artigo não tem a intenção de favorecer a abordagem qualitativa em contraponto a abordagem quantitativa, pelo contrário, ele reforça o posicionamento de que as duas abordagens são importantes e sua escolha depende do problema de pesquisa a ser explorado. O objetivo desse artigo é propor uma reflexão dos motivos que levam a pesquisa qualitativa ser comumente vista como inferior ou menos confiável.
Se tem algo que eu frequentemente ouvi durante minha carreira na pesquisa aplicada foi comentários que duvidavam (e diminuiam) a confiabilidade da pesquisa qualitativa: "conseguimos rodar uma quanti pra ter certeza?", "não podemos tomar isso como verdade porque veio de algumas conversas". Será que essa desconfiança se justifica ou é uma falta de conhecimento do propósito e aplicação de metodologias qualitativas em problemas reais?
Vamos começar esclarecendo o que é pesquisa qualitativa. A resposta curta é que a pesquisa qualitativa é uma abordagem investigativa que, através de diversos métodos e ferramentas, foca em entender os porquês e os comos, em um aspecto mais amplo e complexo, por vezes subjetivo e daí qualificado como algo "com qualidade". Isso porque a pesquisa qualitativa considera que "existe uma relação entre o mundo e o sujeito além daquela que pode ser traduzida em números."
Entretanto, para além da resposta curta, a abordagem qualitativa é, em si, difícil de ser definida. Strauss e Corbin, em 1998, já haviam pontuado o quão vago pode ser definir "qualitativo" e como é difícil descrever essa abordagem que ganhou força no século XX. Pessoas psicanalistas, antropólogas e cientistas sociais deram notoriedade ao trabalho que Paul Felix Lazersfield começou nos anos 40 ao propor um framework que reforçava a importância de responder a pergunta "por que?" . Mas o conceito etnográfico já estava presente em Argonautas do Pacífico Ocidental (de Malinowski, 1922), quiçá em Os Lusíadas (de Camões, 1572).
Patrik Aspers e Ugo Corte, do departamento de sociologia das universidades St. Gallen e Stavanger, respectivamente, levantaram em seu recente artigo "What is qualitative in qualitative research?", de 2019, essa linha do tempo e alguns elementos importantes que nos ajudam a definir a pesquisa qualitativa, que resumidamente são: indução e dedução, empirismo, aproximação do objeto ou contexto de estudo, interpretação de realidades e observação ativa.
Em oposição a pesquisa quantitativa, que tem um foco maior em responder perguntas como quantos e quais, a pesquisa qualitativa pode trazer mais inquietações e indagações do que se tinha no início. Isso porque, diferente da abordagem quantitativa que traz um dado claro, numérico e objetivo, a abordagem qualitativa nunca fará isso, porque não é o objetivo a qual se propõe.
Nesses anos de experiência, foi comum me deparar com (e inclusive fazer) truques para quantificar o que veio de métodos qualitativos. Contar quantas pessoas em uma amostra de 15 mencionaram tal assunto, em quanto tempo a pessoa encontrou a tela e quais foram os temas mais falados em uma conversa. Até aí, nunca me opus, pensando nisso como uma forma estratégica de ser ouvida, entendida e de contar a história daquele contexto, afinal, outra premissa da abordagem qualitativa é facilitar a compreensão de um mundo ambíguo. E, não sejamos ingênuos, pesquisadores querem sentar na mesa dos adultos durante conversa de negócios e a gente sabe que número vende e que falar de quantidade ajuda a tangibilizar. E é exatamente essa lógica que quero colocar em xeque nesse texto: por que temos tanto medo do que não podemos quantificar?
Minha principal hipótese é de que o ser humano capitalista, fordista e imediatista não quer sentir que deu passos pra trás, ele precisa caminhar na direção de uma resolução o quanto antes. A gente procura métricas porque a definição de sucesso só é válida se metrificada e trazer mais perguntas do que certezas é algo que desafia esse (falso) "rumo ao progresso".
Tudo que é subjetivo foi aos poucos dizimado na história do ser humano: as bruxas foram queimadas, as ervas foram tabuladas, salvo as proporções, a sociedade foi demografizada. Ou as coisas são número ou só existem no campo das ideias e das possibilidades. Não há espaço duradouro pro esotérico, pro místico, pro abstrato. A gente tem um put* medo irracional do que a gente não compreende de primeira ou desconhece. Trazer essa lógica do complexo para um ambiente empresarial cheio de metas, hierarquias, key results e o escambau, gera insegurança.
Não se nota que o ambiente empresarial é em si um ambiente caótico e vulnerável, à mercê de diversas ameaças e fraquezas (análise SWOT pode?) e que estudar o caos é uma das potências da abordagem qualitativa.
Como diria Nassim Nicholas Taleb no livro Antifrágil, "A fragilidade implica que há mais a perder do que ganhar (...) mas quando uma Hydra tem uma cabeça cortada, duas crescem no lugar. Hydra demonstra anti fragilidade". Mais perguntas significa que você perderá em um momento imediato mas ganhará a habilidade de navegar na complexidade do mundo. Portanto, ninguém deveria ter medo da pesquisa qualitativa, que inclusive é muito mais simpática que a Hydra, pois já tem seu método descrito há mais de setenta anos.
Vale lembrar então que a pesquisa qualitativa tem validade científica e não significa investigar de qualquer jeito e interpretar descrições de forma arbitrária, pelo contrário, significa ampliar o ponto de vista para encontrar padrões que só emergem quando não se olha números e grandes datasets, mas sim quando se relaciona de perto e com qualidade, o contexto com seu objeto de análise. É por isso que pesquisas qualitativas pressupõem amostras menores, mas que quando bem desenhadas, refletem a complexidade de um cenário e permitem confiabilidade. É como olhar um formigueiro com uma lente ou o céu com um telescópio, você não verá todas as formigas e estrelas de uma vez, mas poderá ver mais detalhes sobre elas e descobrir novas verdades. Para que isso seja possível, sua lente e seu telescópio tem que estar limpos e calibrados, o que na pesquisa seria ter rigor metodológico e intencionalidade.
Para finalizar, quando alguém desconfiar da sua abordagem qualitativa, guie a pessoa para olhar a pergunta que está sendo feita. A pergunta que está sendo feita cabe em um desenho estatístico e quantitativo ou tem seu lugar em uma abordagem qualitativa? Conseguimos conversar com 300 mil usuários de um aplicativo para entendermos os motivos de escolha de um plano de celular, por exemplo, ou seria mais viável inferir algumas razões após exercícios de indução com 10 entrevistas qualitativas? Esses números são hipotéticos, mas a pergunta que fica é, por que confiamos em um 300 mil e não em um 10? Por que tomamos decisões baseadas em zero embazamentos mas temos facilidade em desconsiderar amostras qualitativas? Faça a pessoa se perguntar: Por que é mais fácil entregar uma tarefa enviesada do que admitir que algo é mais complicado do que a gente pensa à primeira vista?
Os critérios de pesquisa não devem parar na academia, se o mercado incorporou a pesquisa, ele deve abraçar também as necessidades e premissas desse processo.
Aqui vai então alguns passos pra definir e defender sua abordagem de pesquisa:
🔎 Aqui você pode ler mais sobre métodos qualitativos em inglês ou em português.
Leia também sobre pesquisas qualitativas e quantitativas
📝 Veja aqui alguns casos que utilizaram abordagem qualitativa:
Case Green Co Brasil para manutenção do DNA da marca
Aplicação para produtos digitais - Case Antidote e games
Case mapa de geração com entrevistas em profundidade aliada a survey
📚 Referências bibliográficas:
https://www.researchgate.net/publication/331387557_What_is_Qualitative_in_Qualitative_Research
https://pt.surveymonkey.com/mp/conducting-qualitative-research/
http://thoughtco.com/qualitative-research-methods-3026555
https://nelsonreyes.com.br/560-566-1-PB-2.pdf
https://www.scribd.com/document/377676444/MALINOWSKI-Bronislaw-Argonautas-do-Pacifico-ocidental-pdf
https://biblotecasaeag2020.blogs.sapo.pt/os-lusiadas-de-luis-de-camoes-pdf-31029
http://files.sedaepe.webnode.com.br/200001223-abaabaca3e/Antifragil%20-%20Nassim%20Nicholas%20Taleb.pdf
Strauss, A., & Corbin, J. M. (1990). Basics of qualitative research: Grounded theory procedures and techniques. Sage Publications, Inc.
Observadora compulsiva e defensora da análise de comportamento e prototipação como parte fundamental do processo da construção de produtos e soluções. Trabalho com pesquisa aplicada desde 2013, conectando dados qualitativos e quantitativos através do storytelling. Hoje sou Lead do time de UX Research na Gympass, sou co-fundadora da Experiência Observe e também dou aulas de Research nos cursos da Tera. Bordo, salvo fotos bonitas no We Heart It e vejo filmes nas horas vagas. O B do LGBT existe e vive <3