Como se não bastasse o medo e as tragédias ocorridas em 2020, outro tema assolou com frequência os meios digitais: a suposta (in)validade do que conhecemos como linguagem neutra, também chamada de “linguagem inclusiva” ou “pronomes neutros”. Algo em comum visto na maioria dessas “discussões” (se sequer podemos chamar assim), foi o excesso de opiniões e achismos ao invés de análises concretas — e é nesse ponto que gostaria de lhe convidar a uma reflexão e possível abertura de horizontes.
Primeiramente, o que é essa tal “linguagem neutra”? Podemos dizer que são um conjunto de ações e conceitos afirmativos, que visam viabilizar uma opção linguística que não se restrinja ao masculino/feminino e, principalmente, se posiciona contra a generalização masculina na língua. Um exemplo dessa generalização em nosso contexto é quando nos referimos a uma equipe como “os designers”, mesmo que nela só tenha uma única pessoa que se identifique no masculino.
Essa subordinação ao masculino, mesmo que este seja minoria, é o que podemos chamar de uma relíquia linguística de origem na estrutura e história da nossa sociedade, por meio do que conhecemos como patriarcado: um sistema social em que homens mantêm o poder primário, e que não-homens (por exemplo, mulheres) são inseridas como secundárias e subordinadas.
“Só isso” já foi o suficiente para que, desde o início do século passado, mundialmente, movimentos sociais começassem a exigir uma neutralidade em diversas línguas, pois não é apenas o Português que utiliza o sistema de masculino/feminino em seus adjetivos e palavras. Um exemplo ocorreu na década de 1960, quando feministas da Suécia já tentavam inserir formas de um gênero neutro na língua sueca (e spoiler: finalmente conseguiram isso em, mas somente em 2015).
No geral, as línguas derivadas do Latim adotam esse sistema, já que a própria linguagem extinta utilizava de masculinos e femininos. No entanto, o que a maioria das línguas, incluindo o Português, pareceu “esquecer” no seu desenvolvimento é que o latim também considerava o gênero neutro. Aqui, fica claro um padrão: o esquecimento do neutro, a fim de reforçar a dualidade feminino/masculino (ou, homem/mulher), para que um possa ser colocado como superior.
O que quero reforçar aqui é que a desconsideração de uma alternativa neutra está diretamente ligada com o reforço de um sistema baseado em duas opções, que inevitavelmente sempre acaba por privilegiar um em detrimento do outro. Imagine-se monitorando sua fala e escrita, quanto você generalizou no masculino vs quanto generalizou no feminino — não só seria exaustivo, mas sabemos que pelo funcionamento do cérebro humano, como estudado na psicologia, é impossível de se manter completamente imparcial quando dado duas opções. Não é logicamente possível uma “neutralidade” baseada em níveis iguais de masculino e feminino, pois nunca haverá os exatos 50% de equilíbrio. É aí que entra nosso coringa: uma terceira opção, a verdadeira neutralidade.
Como citei anteriormente no esforço das feministas suecas, uma opção de gênero neutro nas línguas latinas vem sendo proposta ao redor do mundo há muitos anos — aqui entra nosso primeiro fato ao invés de achismo — as propostas de gênero neutro não são uma “tendência dos jovens nas redes sociais que em breve vai passar”, mas sim um movimento político e social com anos de história mundial.
No Brasil, desde 2004 encontramos registros de esforços sociais para adesão a uma neutralidade de gênero na língua portuguesa, inicialmente concentrada e restrita a meios LGBTQIA+, justamente por ser esse grupo social que compreende o restante do que chamei de “não-homens”, e que não são também mulheres: pessoas que não se identificam restritas ao masculino/feminino, ao “homem ou mulher”, mas sim como algo além ou uma mistura dos dois, entre outras possibilidades, as quais chamamos de pessoas Não-binárias; e pessoas que seu corpo físico não se desenvolveu dentro do estereótipo de órgãos sexuais que conhecemos como macho/fêmea, a quais chamamos de Intersexo.
Com o advento da internet, principalmente nos anos 2000, onde finalmente parcelas significativas da população brasileira tiveram acesso aos meios digitais de comunicação, foi que uma proposta acabou que se tornou popular e conhecida: a substituição das letras A e O em pronomes e flexões de gênero pelo X ou @ — como “todxs” e “elx”.
Essa proposta entrou em desuso já faz alguns anos, sob os argumentos de ser impronunciável na fala e por leitores automatizados de tela, usados por pessoas cegas para acessar meios digitais (o que é verdade, em sua maior parte). Infelizmente, é essa primeira proposta popularizada que trouxe muitas conotações ruins a ideia de gênero neutra, e ainda é utilizada por pessoas contrárias ao tema como um dos exemplos de que “isso não faz sentido” além de outro argumento que quero desmistificar — “ a linguagem neutra é capacitista" (ou seja, prejudica pessoas com deficiência).
A linguagem neutra não é capacitista, desde que utilize alternativas pronunciáveis como terminações em E, ou, por exemplo, pronomes Elu/Delu ou Ile/Dile.
Em resumo: No campo das deficiências visuais, os leitores de tela compreendem essas alternativas pronunciáveis; No campo das deficiências auditivas, a própria Língua Brasileira de Sinais (Libras) é um idioma que não apresenta flexão de gênero, ou seja, já é neutro; e quanto as neurodivergências, que antes eram conhecidas como “deficiências mentais ou intelectuais”, aqui um fato talvez surpreendente: pesquisas mostram que pessoas neurodivergentes, como autistas, TDAHs e disléxicos têm uma maior tendência a se identificarem como pessoas não-binárias e provavelmente usarem pronomes neutros.
A verdade nua e crua é que as pessoas com deficiência são frequentemente usadas como uma espécie de “objeto” por quem é contra a linguagem neutra, quando esgotam-se outros argumentos. Essa prática tem duas características marcantes o: o próprio capacitismo no raciocínio, ao considerar PcDs como “dignos de pena” por “serem incapazes de aprender novas palavras”; e a vilanização da pessoa utilizadora de linguagem neutra, que é colocada numa posição opressora, como se sua exigência por direitos básicos no seu tratamento e existência se tornasse um capricho digno de repreensão.
Aqui, abro um adendo que quem trabalha com UX Writing, muito provavelmente está familiar com o sinônimo de “linguagem inclusiva”, que se popularizou entre as empresas como uma forma de se mostraram mais preocupadas com diversidade e inclusão. Popularizam-se iniciativas e cartilhas sobre como neutralizar cargos e anúncios, como “pessoa desenvolvedora” ao invés de “desenvolvedor(a)”. Essas iniciativas são, justamente, louváveis, pois são consideradas dentro do movimento da linguagem neutra um esforço real e que possui impacto, além de uma prática prevista nas propostas de língua neutra de se utilizar palavras que já existem no português formal para evitar flexões de gênero.
Mas há algo possivelmente problemático nessa prática: achar que ela para por aí. É nesses cenários que, por exemplo, pessoas não-binárias que utilizam apenas pronomes neutros, por não se identificarem nem no masculino nem no feminino, e estão encontrando oportunidades nas áreas de tecnologia, se encontram numa “sinuca de bico” — essa empresa parece preocupada com inclusão, mas será que essa preocupação se encontra apenas no título desta vaga? Minha identidade será respeitada no meu ambiente de trabalho? Será que minha equipe sabe o que é linguagem neutra ou pessoas não-binárias, teve algum treinamento para isso?
Restringir o uso de pronomes neutros por uma pessoa, sob argumentos de “ninguém tem a obrigação” e que a mesma vai ter que “simplesmente aceitar” que vai ser chamada no masculino ou feminino, são ações de preconceito e exclusão, que vão contra nossa constituição federal quanto aos direitos de identidade e expressão.
Além disso, essas argumentações entram em conflito quando enquanto na área de tecnologia de fato temos a obrigação de “simplesmente aceitar” a aprendermos e nos acostumarmos com tantos termos técnicos em inglês, como “Agile”, “Scrum”, ‘Benchmarking”, “Daily” e o próprio “User Experience”.
Por fim, é preciso entender que não há sequer um questionamento quanto à "validade" da linguagem neutra: se uma língua é falada, ela automaticamente existe. Qualquer idioma é dinâmico, vivo, e sofre alterações de acordo com seus falantes e a sociedade que está inserido. Se não existe palavra para nos referirmos a algo, criamos uma. Se uma população concorda em certas adaptações, elas passam a ser válidas simplesmente por serem utilizadas - fizemos isso com “vossa mêrce” que virou “você”, e “aterrizagem” com “z”, que já foi considerada erro de grafia, e agora é tão correta quanto “aterrissagem”.
Apoiar a utilização de linguagem neutra e pronomes neutros é uma forma de se posicionar a favor da inclusão de grupos sociais em que a própria existência depende disso, como pessoas não-bináries e intersexo, e isso vem se tornando mais relevante a cada ano que passa. A área de tecnologia precisa perceber que o posicionamento de diversidade e inclusão vai além de passar a utilizar termos mais inclusivos nos anúncios de vagas, é preciso um interesse em aprender sobre a vivência de diversos tipos de pessoas, inclusive aquelas que utilizam linguagem neutra, e considerar sua existência tanto como possivel profissional como quanto como usuário.
*Para quem deseja se familiarizar com a linguagem neutra e suas flexões, recomendo o “Guia para “Linguagem Neutra” (PT-BR)” de autoria de Ophelia Cassiano, disponível no Medium.
"Designer especializado em Acessibilidade, Inclusão e Diversidade. Ilustrador digital e produtor de conteúdo no projeto Make Science BR. Pessoa neurodivergente (TDAH, sensibilidade sensorial), queer e transmasculino não-binário. Meus pronomes de tratamento: Ele/dele/o ou Elu/delu/e."